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Transplante de microbiota gástrica de pacientes com atrofia e metaplasia em camundongos isentos de germes: resultados iniciais

Human gastric microbiota transplantation recapitulates premalignant lesions in germ-free mice. Kwon SK, Park JC, Kim KH, et al. 
Gut. 2022 Jul;71(7):1266-1276.


Comentarista: 
Maria do Carmo Friche Passos (MG)

Resumo: 
O câncer gástrico (CG) é uma das principais causas de mortalidade por câncer no mundo. Embora inúmeros microrganismos além de H. pylori também possam contribuir para a carcinogênese gástrica, o papel da microbiota gástrica a partir de modelos de camundongos germe free (GF) ainda não é conhecido. O objetivo desse estudo foi avaliar as características histopatológicas da mucosa gástrica de camundongos GF transplantados com microbiota gástrica de pacientes com diferentes estágios da doença gástrica e suas relações com a microbiota. Foram analisados os perfis da microbiota em biópsias do corpo e antro e do suco gástrico de 12 pacientes com displasia gástrica ou CG. Espécimes do corpo e antro e do suco gástrico (n=15 e n=12, respectivamente) de pacientes com gastrite crônica superficial, metaplasia intestinal (MI) ou CG foram transplantados em 42 camundongos GF (C57BL/6germe). A microbiota gástrica foi analisada por sequenciamento genético. Um mês após a inoculação, as características histopatológicas dos estômagos dos camundongos foram analisadas através da imuno-histoquímica. De forma independente, 15 camundongos GF adicionais foram analisados um ano após a inoculação. As comunidades microbianas de pacientes com displasia ou CG no corpo e antro foram semelhantes. A microbiota gástrica de pacientes com MI ou CG colonizou seletivamente os estômagos de camundongos e induziu o aparecimento de lesões pré-neoplásicas, notando-se perda de células parietais e aumento dos focos de inflamação (expressão de F4/80 e Ki-67 e de lectinas CD44v9/GSII). Mudanças displásicas marcantes foram observadas um ano após a inoculação. A conclusão dos autores é que as principais características histopatológicas das alterações pré-neoplásicas são reprodutíveis em camundongos GF transplantados com microbiota gástrica de pacientes com MI ou CG. Os resultados obtidos sugerem que camundongos GF são modelos úteis para se estudar as interações entre a genética do hospedeiro com fatores microbianos e explorar as implicações terapêuticas de cepas microbianas e/ou de seus metabólitos no tratamento das doenças gástricas.

Comentários:
A mucosa gástrica é exposta a bilhões de microrganismos a cada dia. Para impedir a colonização gástrica, bem como limitar a passagem de potenciais patógenos para segmentos mais distais do trato gastrointestinal, o estômago possui vários mecanismos de defesa amplamente ativos, como a acidez, o muco e as enzimas proteolíticas. Apesar disso, pelo menos uma espécie bacteriana, o H. pylori, é capaz de colonizar o estômago humano e, em uma pequena parcela de indivíduos, desencadear alterações significativas na mucosa gástrica (atrofia, metaplasia e displasia), sendo considerado o principal fator desencadeador da carcinogênese gástrica. Sabe-se que a redução da acidez gástrica associada à atrofia oxíntica cria um ambiente favorável à colonização por microrganismos oportunistas. A composição da microbiota gástrica parece mudar consideravelmente ao longo da cascata da carcinogênese, indicando que a disbiose provavelmente está associada à progressão do CG. Embora se saiba que a presença desses microrganismos possa se correlacionar com o desenvolvimento de atrofia no corpo gástrico, nenhum estudo prévio mostrou que outras bactérias, além de H. pylori, seriam capazes de determinar alterações metaplásicas. 

Nesse excelente estudo realizado por pesquisadores coreanos, foi demonstrado que comunidades microbianas podem originar lesões pré-neoplásicas, independentemente da presença ou não H. pylori. Esses autores transplantaram a microbiota de pacientes portadores de doenças gástricas em camundongos GF e categorizaram os perfis da microbiota gástrica tanto dos doadores humanos como dos animais transplantados, observando-se que a microbiota gástrica "patogênica" de pacientes com MI e CG determinou o aparecimento de lesões pré-neoplásicas na mucosa gástrica de camundongos GF.

Inicialmente foi avaliado o padrão da microbiota gástrica de 12 pacientes portadores de CG ou displasia gástrica. No geral, essas amostras foram colonizadas predominantemente por membros do gênero Helicobacter, Streptococcus, Prevotella, Haemophilus e Neisseria. A microbiota do suco gástrico apresentava menor riqueza, porém maior uniformidade comparado à da mucosa antral e oxíntica. A alfa diversidade variou significativamente dependendo da presença ou não do H. pylori. Posteriormente, biópsias gástricas e o suco gástrico foram coletados de pacientes adultos submetidos à endoscopia digestiva alta e que apresentavam gastrite crônica superficial, MI, displasia ou câncer gástrico. Foram comparados o padrão da microbiota gástrica (sequenciamento genético, tecnologia 16s rRNA) entre os tecidos da mucosa e suco gástrico antes e após a inoculação nos camundongos. Após um mês, os camundongos inoculados com mucosa metaplásica ou CG apresentavam escores de inflamação significativamente mais altos do que aqueles inoculados com gastrite superficial, detectando-se um acúmulo de macrófagos nos focos com maior grau de inflamação. Os autores demonstraram, portanto, que a inoculação de mucosa humana com MI ou neoplasia foi capaz de induzir lesões metaplásicas nos estômagos dos camundongos GF, alterações detectadas sobretudo no corpo gástrico (com padrões multifocais). De modo similar, alguns camundongos inoculados com o suco gástrico dos mesmos pacientes também mostraram MI no estômago. Não foram observadas diferenças significativas nos escores de inflamação, entre os grupos H. pylori positivos e negativos. Os efeitos do transplante da microbiota gástrica humana a longo prazo foram avaliados em 15 camundongos um ano após a inoculação, notando-se inflamação, dilatação cística, erosão, hiperplasia foveolar e MI com padrões multifocais, além de lesões displásicas (em cerca de 50% dos animais) observadas sobretudo na região do corpo gástrico. A análise microbiota gástrica dos camundongos por meio do sequenciamento genético 16S rRNA revelou a presença de vários táxons em diferentes abundâncias entre os animais com ou sem lesões displásicas. Assim sendo, os surpreendentes resultados desse estudo demonstraram que o transplante de mucosa e suco gástrico de pacientes com MI e CG em camundongos GF é capaz de desencadear inflamação crônica e lesões pré-neoplásicas, como perda de células parietais, MI e displasia gástrica nesses animais.

É importante ressaltar que esses achados em nada subestimam a importância de H. pylori como patógeno humano, no entanto, reforçam a importância da microbiota gástrica na carcinogênese. Pesquisas futuras serão de fundamental importância para averiguar quais as comunidades microbianas que poderão, de fato, ocasionar neoplasia invasiva gástrica em pacientes com gastrite crônica associada à infecção pelo H. pylori.

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